Democracia racial

Gessica Borges
Revisão por Gessica Borges
Mestre em Estudos Africanos

A democracia racial, também chamada de democracia social ou democracia étnica foi um fenômeno sociopolítico surgido no Brasil em meados da década de 1930.

Ainda que não tenha feito uso da nomenclatura propriamente dita, o conceito de democracia racial foi introduzido por Gilberto Freyre em sua obra intitulada Casa-grande & Senzala, publicada em 1933.

O conceito se baseava na crença de que as relações entre escravizados e senhores eram cordiais, e descrevia as relações raciais no Brasil como algo pacífico e amigável.

Em comparação com a realidade vivida pelos Estados Unidos, onde havia uma forte segregação racial que se dava por meios muito violentos, concluiu-se que o Brasil não era racista.

Alguns estudiosos consideraram que o Brasil era um país livre de discriminação racial e que os brasileiros não faziam juízos de valores com base em etnias.

Considerava-se ainda que a discriminação existente no Brasil estava relacionada com classes sociais.

Assim, acreditava-se que o motivo de os negros ocuparem empregos secundários e de geralmente viverem em grande disparidade comparativamente aos brancos, estava relacionado com o fato de fazerem parte de classes sociais mais baixas e não propriamente com o fato de serem negros.

O mito da democracia racial na sociedade brasileira

Gilberto Freyre, sociólogo brasileiro e autor da obra Casa grande e senzala (de 1933), foi considerado por muitos como o “pai” da ideia de democracia racial no Brasil.

Gilberto Freyre
Gilberto Freyre (15 de março de 1900 - 18 de julho de 1987) (Autor: R.uri/Creative Commons).

No entanto, segundo ele, o fato de sua obra referir uma grande miscigenação entre etnias no Brasil, não significava que a discriminação não existisse de todo no território brasileiro.

Para Freyre, a miscigenação contínua que acontecia no território brasileiro seria responsável por aquilo que ele chamava de meta-raça.

A meta-raça consistiu em uma superação do conceito de raça em si, que passou a ser tido como um fator indiferente e exclusivamente biológico.

Gilberto Freyre também desenvolveu uma teoria chamada de luso-tropicalismo, que consistiu em uma interpretação própria de como a integração dos portugueses nos trópicos teria acontecido.

O luso-tropicalismo defendia que os portugueses haviam se integrado nos trópicos através de uma colonização baseada na miscigenação, na missão evangelizadora e na reciprocidade cultural.

Apesar de fazer parecer ter aceitado e adotado essa teoria como real, o regime português nunca a incorporou de verdade e apenas agiu por conta de interesses.

Para os portugueses, a teoria de Gilberto Freyre serviu como forma de sair do isolamento no qual se encontravam durante as décadas de 50 e 60, ao fazer com que o colonialismo português transmitisse uma ideia positiva de colonização filantrópica.

Em 1976, Thomas Skidmore publicou uma obra chamada de Preto no Branco. Essa obra consistiu em um estudo que questionou as relações raciais brasileiras e analisou se o conceito de democracia racial realmente era verdadeiro.

Thomas considerava que a ideia de democracia racial teria sido criada pela elite brasileira, majoritariamente branca, para camuflar uma opressão racial existente.

Um dos nomes de grande destaque relativamente ao mito da democracia racial e suas consequências para a sociedade brasileira é Florestan Fernandes.

Florestan Fernandes
Florestan Fernandes (22 de julho de 1920 - 10 de agosto de 1995) (Autor: Antonio Milena).

Florestan foi um político e sociólogo brasileiro que desenvolveu uma série de estudos com o intuito de analisar a suposta democracia racial no Brasil.

O sociólogo acabou por apresentar vários contrapontos que colocaram em causa a credibilidade do conceito de democracia racial.

Dentre eles, alguns desajustes relacionados à comparação de posições sociais de brancos e negros, que ele atribuía a resquícios da escravatura.

Não se entende a situação do negro e do mulato fazendo-se tábula rasa do período escravista e do que ocorreu ao longo da instauração da ordem social competitiva. [...] Do ponto de vista sociológico, o que interessa, nesse pano de fundo, é o fato de que os estoques negro e mulato da população brasileira ainda não atingiram um patamar que favoreça sua rápida integração às estruturas ocupacionais, sociais e culturais do capitalismo.

Florestan Fernandes acreditava que o mito da democracia racial havia sido construído com base em dois equívocos:

  1. A compreensão de que a miscigenação seria uma forma de integração social e como sintoma de fusão e igualdade racial.
  2. Uma confusão no que diz respeito à existência de padrões de tolerância racial que predominariam “na esfera do decoro social com igualdade racial propriamente dita”.

Apesar disso, Florestan acreditava que alguns pontos eram favoráveis à existência de uma verdadeira democracia racial:

Importa, em primeiro lugar, que se inclua o “negro” e o “mulato” (como outras “minorias étnicas, raciais ou nacionais”) na programação do desenvolvimento socioeconômico e nos projetos que visem aumentar a eficácia da integração nacional. Dada a concentração racial da renda, do prestígio social e do poder, a “população de cor” não possui nenhuma vitalidade para enfrentar e resolver seus problemas morais. Cabe ao governo suscitar alternativas, que viriam, aliás, tardiamente. Nessas alternativas, escolarização, nível de emprego e deslocamento de populações precisariam ganhar enorme relevo. Em suma, aí se necessita de um programa de combate a miséria e a seus efeitos no âmbito dessa população.

Uma grave consequência da democracia racial para a sociedade brasileira foi a de ter dado origem a uma ideia errônea de que não havia preconceito racial no Brasil e de que cidadãos de todas as etnias tinham os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Somente após vários estudos, esta ideia foi desmistificada.

Saiba o significado de democracia.

Miscigenação no Brasil

Para alguns estudiosos, a miscigenação entre indígenas, negros e brancos era uma prova de que o país não tinha características racistas e de que todos se relacionavam com todos.

Outra linha de pensamento afirma que a própria miscigenação era uma tática racista de “purificar” a etnia da população.

Essa "purificação" chegou, inclusive, a constituir um projeto político que tinha como objetivo embranquecer o povo. Em 18 de setembro 1945, o governo de Getúlio Vargas regulamentou a entrada de imigrantes no Brasil para atender a “necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia”.

Essa mistura de todas as etnias com a cor branca tinha a intenção de, com o passar dos anos e das gerações, ir “clareando” a cor da pele das gerações seguintes.

Esse projeto político, por si só, deixou claro que a crença na existência de uma democracia racial no Brasil era uma ideia utópica, e que o racismo se fazia notar, inclusive, por meio de medidas governamentais.

Redenção de cam
A Redenção de Cam, obra de 1852 que retrata o "embranquecimento" gradual de gerações.

Veja o significado de raça e etnia e de miscigenação.

Racismo no Brasil

O racismo no Brasil diz respeito a uma estrutura socio-política-econômica que promove desigualdades baseada em ideais de hierarquia racial.

Trata-se de um sistema de opressão que nega oportunidades para alguns grupos sociais (majoritariamente negros e indígenas) com base na cor de pele e/ou etnia (antes designada raça). O racismo surgiu no Brasil juntamente com a definição da sociedade colonial.

A escravidão dos negros africanos teve início em território brasileiro no início do século XVI. Os negros escravizados eram, em geral, considerados sub-humanos, e forçados a viver sob um regime de degradação social, política e econômica.

Do outro lado do cenário da escravatura, em funções de liderança, estavam os brancos europeus que coordenavam e indicavam as atividades a serem desempenhadas pelos escravizados.

Durante esse período predominava a ideia de os brancos serem superiores, darem ordens, tomarem decisões, etc. e de os negros serem inferiores e se limitarem a obedecer.

O racismo passa a ser crime no Brasil

Em 1988 foi criada uma lei, a lei 7.716, para definir os crimes de racismo.

O Art. 5, inc. XLII dessa lei da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, declara que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”.

Desta forma, ficou estabelecido que o racismo é um crime para o qual não existe a possibilidade de pagamento de fiança.

Após a criação da lei 7.716, foram criadas ainda outras medidas para garantir que pessoas de diferentes etnias pudessem ter acesso aos mesmos direitos, sem discriminação: o Estatuto da igualdade racial (criado em 2010) e o Sistema de cotas raciais (criado em meados do ano 2000).

Estatuto da igualdade racial

O Estatuto da igualdade racial é uma lei promulgada em 2010 pelo então presidente do Brasil (Luiz Inácio Lula da Silva), que destina-se a garantir efetivamente aos negros a igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

Esse estatuto define o dever e a postura do Estado no que diz respeito à proteção dos interesses dos cidadãos afro-brasileiros.

Sistema de cotas raciais

O sistema de cotas raciais consiste na reserva de vagas em instituições públicas ou particulares para grupos de determinadas etnias, principalmente negros e indígenas.

Um dos objetivos do sistema de cotas raciais é o de diminuir as desigualdades socioeconômicas e educacionais na sociedade.

É provável que essas desigualdades tenham tido origem histórica pois já na época da escravatura, negros e indígenas tinham menos oportunidades.

A Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira universidade brasileira a implementar o sistema de cotas raciais para negros, em 2004.

No decorrer dos anos, praticamente todas as universidades passaram a disponibilizar parte das vagas para o sistema de cotas, que, no geral, não só engloba as cotas raciais como cotas para estudantes que cursaram o Ensino Médio em instituição pública, estudantes de baixa renda e pessoas com deficiência.

Depois da implementação do sistema de cotas, o total de negros e pardos que concluiu a graduação aumentou de 2,2%, em 2000, para 9,3% em 2017.

Segundo o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), o número de estudantes negros a se matricularem em cursos de graduação aumentou de 11% em 2011 para 30% em 2016.

Apesar de a possibilidade de concluir uma graduação ter aumentado em praticamente quatro vezes para a população negra. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o índice de negros graduados ainda não é equiparável ao de brancos.

Assim sendo, fica claro que ainda há um longo caminho rumo ao objetivo principal: a diminuição da desigualdade. Ainda assim, parte da população é contra as cotas.

Algumas pessoas acreditam que as cotas acabam por reforçar o preconceito, dando a entender que quem delas usufrui não tem capacidades para alcançar determinadas conquistas por si só.

Criação das leis 10.639/03 e 11.64508

A lei 10.639/03 foi sancionada no dia 9 de janeiro de 2003 e a sua criação regulamentou que o ensino sobre história e cultura afro-brasileira fosse obrigatório em todas as escolas, independentemente de o ensino ser público ou particular.

A inclusão desses estudos foi implementada desde o Ensino Fundamental até o Ensino Médio em disciplinas que já integravam a grade curricular nacional, principalmente nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

A lei também instituiu o dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra, um dia dedicado ao combate ao preconceito racial no Brasil.

Essa data foi escolhida como forma de homenagear Zumbi dos Palmares, líder quilombola morto neste dia. Zumbi foi um dos pioneiros na resistência contra a escravidão.

No dia 10 de março de 2008, a lei 11.645 ampliou a ação da lei 10.639 e incluiu como também obrigatório o ensino sobre história e cultura indígena.

A criação dessas leis foi uma medida importante e necessária para a construção de uma sociedade brasileira mais consciente e democrática em termos raciais.

Veja também:

Gessica Borges
Revisão por Gessica Borges
Comunicadora, redatora, curiosa de berço e apaixonada por cultura em geral. Licenciada em Comunicação Social pela Universidade Anhembi Morumbi em 2012. Mestre em Estudos Africanos.
Carla Muniz
Edição por Carla Muniz
Professora, lexicógrafa, tradutora, produtora de conteúdos e revisora. Licenciada em Letras (Português, Inglês e Literaturas) pelas Faculdades Integradas Simonsen, em 2002 e formada em 1999 no Curso de Magistério (habilitação para lecionar na Educação Infantil e no Ensino Fundamental I).
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